Proteção sem limites ao vinho nacional 
Caro amigo,
O mundo do vinho no Brasil vive momentos decisivos. Agora é mais do que necessário fazer um alerta a nossos clientes sobre algumas notícias muito preocupantes para os amantes de vinho.
Por incrível que pareça, surgem outra vez notícias a respeito da pressão dos grandes produtores gaúchos sobre o governo para que haja um novo aumento de impostos sobre o vinho importado, como se a gigantesca carga tributária atual não representasse proteção suficiente para o vinho nacional. Fala-se agora em “salvaguardas”,
 como se a indústria nacional estivesse em perigo, em risco de falência,
 quando na verdade as notícias enviadas à imprensa reportam um grande 
crescimento de vendas. Afinal, é preciso definir qual discurso é o verdadeiro: o vinho nacional vai muito bem ou vai muito mal? Os
 comunicados e números oficiais dizem que vai muito bem, o que invalida o
 argumento a favor das “salvaguardas”. Além do que, os impostos atuais 
já são altíssimos, e representam o verdadeiro grande inimigo do consumo 
de vinhos no Brasil.
Além do aumento de impostos  — pediu-se um aumento de 27% para 55% no imposto de importação, o primeiro da longa cadeia de impostos pagos pelo vinho importado — desejam também limitar a importação pelo estabelecimento de cotas para a importação de cada país. Ficariam livre das cotas apenas os vinhos argentinos e uruguaios. Incrível: cotas de importação para proteger ainda mais um setor, o de vinhos finos nacionais, que cresceu cerca de 7% em 2011 — ou seja, nada menos do que quase o tripo do crescimento do PIB brasileiro! Se
 forem adotadas salvaguardas para um setor que cresceu o tripo do PIB em
 2011,  que medidas de proteção se poderia esperar então para o restante
 da economia? Repito porque parece incrível, mas é verdade: pedem 
salvaguardas para um setor que cresceu cerca de 7% em 2011! É preciso 
dizer mais alguma coisa?!
Além de mais impostos e das cotas, os mesmos grandes produtores pedem também ainda mais burocracia,
 como se a gigantesca burocracia que já envolve a importação de vinhos 
no Brasil também não fosse proteção suficiente para o vinho nacional. 
Nem bem foi implantado o malfadado selo fiscal e já se pede agora
 que o rótulo principal do vinho, o rótulo frontal, contenha algumas das
 informações que hoje já constam dos contra-rótulos obrigatórios. Essa 
nova medida, se for adotada, vai afetar — como sempre acontece com a 
burocracia no caso dos vinhos — apenas os vinhos de alta qualidade e pequenos volumes,
 já que os grandes produtores mundiais não terão nenhuma dificuldade em 
imprimir rótulos especiais apenas para o mercado brasileiro. Isso, por 
outro lado, obviamente não será possível para aqueles produtores que 
embarcam menos de 50 ou 100 garrafas de cada vinho para o nosso país. 
Quem, afinal, seria responsável pelo aumento no interesse pelo vinho no Brasil? Certamente
 são esses pequenos produtores, de tanto charme e história, cuja vinda 
se tenta dificultar aumentando a burocracia, em uma medida sobretudo 
pouco inteligente. A importação desses vinhos deveria ser incentivada 
por todos, inclusive pelos grandes produtores nacionais, porque são eles
 os grandes veículos de propagação da cultura do vinho no mundo inteiro.
Para completar esse quadro preocupante, agora também são os vinhos orgânicos de pequenos produtores que têm sua posição ameaçada em nosso país.
 A partir de Janeiro deste ano, os vinhos orgânicos ou biodinâmicos — 
mesmo os certificados como tal em seus países de origem ou por órgãos 
certificadores internacionais — não poderão mais ser identificados como 
tal no mercado brasileiro, a menos que sejam certificados por organismo 
certificador brasileiro. Expressões como “orgânico”, “ biodinâmico”,  
“bio”,  etc, são proibidas agora nos rótulos, privando o consumidor 
dessa informação esencial — com exceção dos vinhos certificados por 
organismo certificador brasileiro. Acontece que o processo de 
certificação brasileiro é caro e demorado, sendo na prática inacessível aos pequenos produtores do mundo todo.
 Acreditamos que apenas os grandes produtores mundiais conseguirão se 
registrar aqui como orgânicos ou biodinâmicos, privando assim o mercado 
do conhecimento de um número já muito grande e sempre crescente de 
produtores orgânicos. O vinho é um produto muito particular e 
específico, em que a maior parte da produção mundial de qualidade 
está nas mãos de produtores muito pequenos, que não terão recursos para 
obter a certificação brasileira. Sem dúvida acreditamos que é o caso
 de adiar a aplicação dessa medida para os vinhos, pelo menos até que 
sejam assinados acordos de reciprocidade, que permitam o reconhecimento 
mútuo dos processos de certificação no Brasil e no exterior. Afinal, a
 quem interessa dificultar a propagação dos vinhos orgânicos a não ser a
 quem não tenha a intenção de produzir vinhos dessa forma?
Diante desse panorama triste, a pergunta que se impõe é a seguinte: qual o limite para a proteção necessária aos grandes produtores nacionais para que possam competir no mercado? Ou
 tudo isso seria apenas uma busca por maiores lucros? Algumas das 
medidas adotadas recentemente, como o malfadado selo fiscal, atingem fortemente os pequenos produtores nacionais também. Vale repetir que os pequenos produtores brasileiros deveriam ter um papel importante no panorama vinícola nacional,
 uma vez que não existe país com alguma relevância no mundo do vinho 
onde o mercado seja dominado por apenas alguns grandes produtores. 
Afinal, todos nos lembramos do período anterior ao início dos anos 
noventa, quando o mercado pertencia a um pequeno grupo de gigantes da 
indústria nacional, a maioria multinacionais, e a alguns gigantes da 
industria vinícola internacional — situação que obrigava o consumidor 
brasileiro a consumir vinhos caros e medíocres, quando no país nem 
sequer se sabia o que significava a palavra sommelier.
Estaríamos
 na iminência de uma volta a esse passado triste para o vinho em nosso 
país? Será que serão perdidos todos os ganhos dos últimos anos, quando, à
 custa de tantos esforços, aumentou enormemente a cultura do vinho no 
Brasil, com o surgimento de muitos milhares de profissionais ligados ao vinho, de inúmeras publicações sobre essa bebida maravilhosa, de tantos novos empregos e de tantas novas possibilidades de crescimento profissional? Seriam os muitos milhares de brasileiros que trabalham nesse novo mercado criado pelo vinho importado, em particular o verdadeiro exército de sommeliers, menos brasileiros do que aqueles que trabalham nas grandes empresas produtoras de vinho nacional? E vale lembrar que de cada 5 garrafas de vinho consumidas no Brasil, entre vinhos finos, espumantes e vinhos comuns (produzidos com uvas de mesa), nada menos do que quase 4 (77.4%) já são de vinhos brasileiros! Os números de vendas e de crescimento do vinho nacional são gritantes, e tornam absurdo se buscar ainda maior proteção!
O consumidor precisa se manifestar, precisa dizer não a esses verdadeiros abusos!
É preciso ter uma agenda positiva para
 o vinho no Brasil, com todos lutando juntos para um aumento do consumo,
 para que o vinho obtenha o tratamento tributário de um complemento 
alimentar — como em diversos países da Europa — e não um tratamento punitivo com
 ocorre aqui, onde o ICMS pago pelo vinho é o mesmo pago por uma arma de
 fogo! É preciso também lutar para diminuir a burocracia, que tanto 
atrapalha os pequenos produtores de vinhos de baixo volume e alta 
qualidade — aqueles que criam mercado para o “produto vinho”.
É importante que se compreenda o quanto antes que o vinho não é uma commodity,
 onde o único fator a influenciar a compra é o preço. Vinho é cultura, é
 diversidade, é terroir, é arte. É como o mercado de livros: o 
brasileiro lê pouco, assim como bebe pouco vinho. E dificultar a venda 
de livros de autores estrangeiros não apenas não serviria para aumentar a
 venda de livros de autores brasileiros, como certamente inibiria ainda mais o hábito da leitura.
 O mesmo ocorre com os vinhos. É uma ilusão achar que encarecendo o 
vinho importado o consumidor vai substituí-lo automaticamente pelo vinho
 nacional. Na verdade o mais provável é que substitua por outro vinho 
importado mais barato, ou pela cerveja gourmet, ou pelo whisky, por 
exemplo. O que é preciso é popularizar o consumo do vinho pela 
diminuição dos preços e da burocracia, tanto para os vinhos nacionais 
como para os importados. Na verdade eles são aliados, e não inimigos 
como acreditam aqueles que defendem um protecionismo ainda maior para o 
vinho brasileiro.
O
 amante do vinho precisa reagir contra essa situação. Ou teremos todos 
que aceitar uma volta à situação de 20 anos atrás, com a perda de todo o
 esforço, todo o trabalho e toda a evolução obtida nesse período.
Cordialmente,
Ciro de Campos Lilla
Presidente das importadoras Mistral e Vinci
 
 
 
